REPORTAGEM ESPECIAL: Caetano Veloso, o filho da Roma Negra (parte final)

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Logo na abertura do disco ‘Bicho’, de 1977, Caetano Veloso promove o bom sentimento e a positividade presentes em quase todas as etapas de sua carreira, seja liricamente ou na forma. Com uma única estrofe que se repete por pouco mais de sete minutos, Odara é um termo originário da cultura hindu e significa “paz” ou “tranquilidade”. Também é de grande importância na religião do candomblé e da umbanda, sendo um tipo de exu. À época, o Brasil vivia o início – ‘lento, gradual e seguro’ – da decadência da Ditadura Civil-Militar e o filho da Roma Negra parecia expor ali a necessidade de se trazer positividade em tempos tão sombrios.

Esta matéria encerra a série de reportagens que o portal MBV fez sobre o artista ao longo do mês de agosto. Leia também a parte 1 e a parte 2. Caetano incorporou para si, ao longo dos anos, o princípio da antropofagia como algo mais abrangente que o movimento tropicalista. A tudo sempre observou e se alimentou de inúmeras referências – da voz de João Gilberto, do rock and roll que a Jovem Guarda fazia e do samba do recôncavo baiano. Ao beber de todas essas fontes, parece que hoje encontrou em si a juventude. Olhando apenas para a aparência física, vemos um artista que parece ainda mais jovem que antes.

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Na década de 1980, os discos Uns Velô marcam a percepção aguçada e referenciada do som que se fazia à época, tanto em relação à disco music quanto ao rock. Anos depois, já ao longo da década de 2000, o compositor reencontraria o rock, desta vez de forma mais minimalista: guitarra, baixo, bateria e voz. A Banda Cê, como ficou conhecida, foi formada por Caetano, Pedro Sá, Marcelo Callado e Ricardo Dias Gomes. O projeto rendeu três álbuns. O primeiro, com o mesmo nome da banda, ganhou o Grammy Latino, em 2007, de Melhor Álbum de Compositor, e a música ‘Não Me Arrependo’ venceu como Melhor Canção Brasileira.

Antecedendo o lançamento do segundo disco da Banda Cê, Caetano Veloso resolveu realizar o show Obra em Progresso para testar o repertório, além de apresentar sucessos de sua carreira e receber convidados especiais como Jorge Mautner, Teresa Cristina e Arnaldo Brandão. As apresentações foram realizadas no Vivo Rio e no Teatro Oi Casa Grande, no Rio de Janeiro, no ano de 2008. No ano seguinte, o artista lançou o álbum Zii & Zie.

O terceiro álbum, que encerra essa fase da carreira do cantor, foi lançado em 2012. A extensa turnê pelo Brasil e mundo afora de Abraçaço consagrou o trabalho realizado ali. Logo nos primeiros shows, realizados no Circo Voador, no Rio, foi possível notar um público atento e que parecia ter ensaiado as músicas antes das apresentações. A plenos pulmões, a plateia, majoritariamente formada pelo público jovem, acompanhou todas as canções de Caê, das mais clássicas às mais recentes.

Enxergando o tempo como implacável e pelo entendimento de sua própria finitude, após se reunir com Gilberto Gil em uma turnê memorável, Caetano convocou os filhos Tom, Zeca e Moreno para o show Ofertório, que segue em turnê pelo mundo. No tempo em que muitos artistas recorrem a álbuns clássicos de suas respectivas carreiras como forma de perpetuação, o filho da Roma Negra se alimenta do passado e expõe o(s) novo(s), em carne e osso, ao seu lado no palco.

Antropofagicamente.

 

Por: João Santiago

 

 

REPORTAGEM ESPECIAL: Caetano Veloso, o filho da Roma Negra (parte 1)

A Roma Negra, mais conhecida como São Salvador da Bahia de Todos os Santos, é assim vista e explorada no cancioneiro brasileiro em contraponto à tal Roma Branca, localizada na Itália. Se lá é a capital da Igreja Católica, a Bahia é o Vaticano do Candomblé. Sua população, majoritariamente negra e orgulhosa disso, transpira a admirável capacidade de manter sua tradição, por meio das manifestações culturais, formas de estar, comer e vestir durante centenas de anos.  Sua ancestralidade lutou contra a mais cruel das opressões: a escravatura.  E se o ‘samba nasceu lá na Bahia’, como foi sacramentado por Vinícius e Baden, Caetano Veloso foi quem, antropofagicamente, construiu ao longo de sua jornada a união de tal afirmativa às tradições de sua terra, à música pop, à voz e ao violão de João Gilberto.

Essas reverberações que o artista tropicalista projeta são como o efeito da ‘chuva que lança areia do Saara sobre os automóveis de Roma’, presente na canção Reconvexo e reflexo da realidade: de fato uma tempestade de areia no Egito é capaz alcançar a cidade italiana! E também a Amazônia, como sugere o poeta em seguida:

Eu sou a chuva que lança a areia do Saara
Sobre os automóveis de Roma
Eu sou a sereia que dança, a destemida Iara
Água e folha da Amazônia

Caetano nasceu na cidade de Santo Amaro, na Bahia, no dia 7 de agosto de 1942, e é perito na obra de João Gilberto. Literalmente, sim, perito. Em 2011, o artista atuou como assistente técnico da defesa de seu conterrâneo.

Segundo laudo divulgado à época, “Ouvindo-as (as músicas) sem os artifícios que as desfiguraram, maravilhei-me ao tomar consciência de que elas são ainda mais deslumbrantes do que estavam em minha memória”. E avaliou: “O processo de remasterização adotado nos discos de João Gilberto foi o pior possível. A remasterização foi péssima, com resultado superlativamente ruim, em relação aos LP’s”.

Caê começou a carreira profissional no ano de 1965, com o compacto Cavaleiro/Samba em Paz. O cantor e compositor acompanhava sua irmã mais nova, Maria Bethânia, no Rio de Janeiro, em suas apresentações no espetáculo Opinião. Em 1963, ele conhece Gilberto Gil, apresentado pelo produtor Roberto Santana. A identificação foi imediata e os dois se tornaram amigos muito próximos. Em 1967, Caetano se apresenta no III Festival da Música Popular Brasileira, da TV Record, com a canção Alegria, Alegria. O movimento de incluir guitarra na música brasileira, que o artista afirmou ser uma ‘decisão política’ no documentário Uma Noite em 67 (Renato Terra e Ricardo Calil) diametralmente oposta à passeata realizada meses antes, por parte da classe artística brasileira, contra a guitarra elétrica, contou com a participação do grupo argentino Beat Boys. 

Em 1969, o artista foi preso pela Ditadura Civil-Militar e partiu para o exílio na cidade de Londres, na Inglaterra, com Gil.

Nesse mesmo período, exilado, Caetano recebeu a visita do já consagradíssimo rei Roberto Carlos. Ali, o rei apresentou a canção As Curvas da Estrada de Santos, que emocionou todos os que estavam presentes, principalmente o compositor baiano. Roberto ficou tão comovido que, quando retornou ao Brasil, compôs Debaixo Dos Caracóis Dos Seus Cabelos para o amigo.

Confira a história desse encontro contada pelo próprio Caetano:

O artista brasileiro, que já havia promovido o movimento tropicalista antes mesmo de partir para o exílio, voltou fazendo barulho pra valer, unindo-se a Gal Costa, Gilberto Gil e Maria Bethânia com o grupo Doces Bárbaros. Caetano disse, anos depois, em uma entrevista coletiva quando o grupo se reuniu novamente, em 2002, que ele via ‘os quatro sobre uma luz separada e especial’ em relação ao que já haviam feito separadamente ou com outros grupos até então. O movimento tropicalista, que culminou no disco Tropicália ou Panis Et Circencis, permitiu e abriu o caminho para que os Doces Bárbaros pudessem existir, mas não só eles. Abriu espaço para toda uma geração de artistas como os jovens mineiros do Clube da Esquina, os Novos Baianos e duplas que mesclavam o tradicional ao urbano como Kleiton & Kledir que, originalmente, haviam feito parte de um grupo de rock: Os Almôndegas. 

Em 1987, no documentário Eclats Noirs du Samba, dirigido por Paulo Moura, Gil e Caetano conversam sobre os desdobramentos do movimento que os tornaram notoriamente conhecidos:

Caetano reuniu elementos em sua música que lhe permitiam impactar desde a tempestade de areia do Saara à Roma Negra e à Roma Branca. Subverteu e acolheu a ordem joão-gilbertiana ao promover uma forte transformação na Música Popular Brasileira. Ao integrar elementos da música pop ao tradicional, o artista baiano rompeu as fronteiras da cultura nacional e, ao lado de Gil, radicalizou quando foi necessário e, já que a arte não tem fronteiras, por que ele teria?

 

Continua…

Por: João Santiago

Caetano Veloso é o convidado do novo episódio da série ‘Essenciais’, podcast da Deezer

A plataforma de streaming musical Deezer lançou no mês de julho o nono episódio da série ‘Essenciais’, com Caetano Veloso. O podcast já reuniu grandes nomes da música brasileira em um bate papo informal, tendo a discografia do artista como fio condutor.

Caetano é leonino – como gosta de salientar – e dispensa apresentações. Onipresente na música e na cultura nacional contemporânea, o cantor e compositor ousadamente foi atravessando barreiras que o tempo mal conseguiu lhe impor e segue atento e forte; e crítico. É isso que mostra ao falar sobre a ditadura, por exemplo, no Essenciais, podcast da Deezer que homenageia músicos brasileiros por meio de conversas que usam a discografia do artista como fio condutor.

“Se onde queres revólver sou coqueiro”, como diz na letra de “Quereres”, de 1984, ano de Diretas Já, Caetano foi e é publicamente contra um querer político que violente seus princípios, o que lhe fez preso, exilado e ter capas de discos censuradas. No podcast, ele avalia o peso da ditadura não só na sua obra, mas como um “carma” que ameaça a grandeza do país.

“Será que o Brasil tem que pagar tanto carma assim para chegar a dizer o que ele realmente tem a dizer? Se as reações são tão profundas às possibilidades do Brasil é por causa da inevitável grandeza que o país tem que representar no mundo. O Brasil tem originalidade, é um país de dimensões imensas. A gente fala português nas Américas. Tem uma população altamente miscigenada. É muita coisa. Sabem por que fazem tudo para não dar certo? Porque se der certo é muito! Então a reação é muita. E a reação tem sido muita, mas a gente aguenta. Eu vou em frente”, afirma o artista.

CAETANO COMENTA SOBRE MEME

O disco Muito, de 1978, foi o menos vendido e recebeu uma chuva de críticas negativas. Uma delas, do jornalista Geraldo Mayrink, da revista Veja, muitos anos depois se tornou um meme. É aquele em que aparece Caetano dizendo: “ Você é burro cara, que loucura como você é burro.”

O contexto, segundo Caetano, foi o seguinte: “Ele tinha feito um negócio dizendo que a minha capacidade de escrever os versos das letras das canções tinha caído muito. E dava exemplos de como estava escrevendo mal com trechos das canções. E todos não eram meus, eram citações! E aí pensei o cara tá por fora, o cara é crítico de música e não sabe das coisas”, explica. “Muito” é o disco que traz algumas de suas canções mais populares como “Terra” e “Sampa”.

E pensar que poderíamos ter ficado com uma história musical abreviada de Caetano. No período do Tropicalismo ele considerou deixar a música. Quando criança pensava em ser filósofo, depois professor e artista plástico, porque gostava de pintar.

“A música apareceu, foi uma causalidade. No período do Tropicalismo decidi que ia deixar de fazer música. Tinha uns amigos místicos que diziam que era uma missão, que seria uma coisa grande. Eu não me guio por isso. Eu me reencontro com isso. Quando eu falei do Brasil ter uma vocação, uma possibilidade de grandeza, eu sinto isso.”

 

Ouça o podcast Essenciais da Deezer:

https://www.deezer.com/br/show/57055

Ouça a playlist:

https://www.deezer.com/br/playlist/6234385664

 

Da Redação