REPORTAGEM ESPECIAL: Caetano Veloso, o filho da Roma Negra (parte 1)

A Roma Negra, mais conhecida como São Salvador da Bahia de Todos os Santos, é assim vista e explorada no cancioneiro brasileiro em contraponto à tal Roma Branca, localizada na Itália. Se lá é a capital da Igreja Católica, a Bahia é o Vaticano do Candomblé. Sua população, majoritariamente negra e orgulhosa disso, transpira a admirável capacidade de manter sua tradição, por meio das manifestações culturais, formas de estar, comer e vestir durante centenas de anos.  Sua ancestralidade lutou contra a mais cruel das opressões: a escravatura.  E se o ‘samba nasceu lá na Bahia’, como foi sacramentado por Vinícius e Baden, Caetano Veloso foi quem, antropofagicamente, construiu ao longo de sua jornada a união de tal afirmativa às tradições de sua terra, à música pop, à voz e ao violão de João Gilberto.

Essas reverberações que o artista tropicalista projeta são como o efeito da ‘chuva que lança areia do Saara sobre os automóveis de Roma’, presente na canção Reconvexo e reflexo da realidade: de fato uma tempestade de areia no Egito é capaz alcançar a cidade italiana! E também a Amazônia, como sugere o poeta em seguida:

Eu sou a chuva que lança a areia do Saara
Sobre os automóveis de Roma
Eu sou a sereia que dança, a destemida Iara
Água e folha da Amazônia

Caetano nasceu na cidade de Santo Amaro, na Bahia, no dia 7 de agosto de 1942, e é perito na obra de João Gilberto. Literalmente, sim, perito. Em 2011, o artista atuou como assistente técnico da defesa de seu conterrâneo.

Segundo laudo divulgado à época, “Ouvindo-as (as músicas) sem os artifícios que as desfiguraram, maravilhei-me ao tomar consciência de que elas são ainda mais deslumbrantes do que estavam em minha memória”. E avaliou: “O processo de remasterização adotado nos discos de João Gilberto foi o pior possível. A remasterização foi péssima, com resultado superlativamente ruim, em relação aos LP’s”.

Caê começou a carreira profissional no ano de 1965, com o compacto Cavaleiro/Samba em Paz. O cantor e compositor acompanhava sua irmã mais nova, Maria Bethânia, no Rio de Janeiro, em suas apresentações no espetáculo Opinião. Em 1963, ele conhece Gilberto Gil, apresentado pelo produtor Roberto Santana. A identificação foi imediata e os dois se tornaram amigos muito próximos. Em 1967, Caetano se apresenta no III Festival da Música Popular Brasileira, da TV Record, com a canção Alegria, Alegria. O movimento de incluir guitarra na música brasileira, que o artista afirmou ser uma ‘decisão política’ no documentário Uma Noite em 67 (Renato Terra e Ricardo Calil) diametralmente oposta à passeata realizada meses antes, por parte da classe artística brasileira, contra a guitarra elétrica, contou com a participação do grupo argentino Beat Boys. 

Em 1969, o artista foi preso pela Ditadura Civil-Militar e partiu para o exílio na cidade de Londres, na Inglaterra, com Gil.

Nesse mesmo período, exilado, Caetano recebeu a visita do já consagradíssimo rei Roberto Carlos. Ali, o rei apresentou a canção As Curvas da Estrada de Santos, que emocionou todos os que estavam presentes, principalmente o compositor baiano. Roberto ficou tão comovido que, quando retornou ao Brasil, compôs Debaixo Dos Caracóis Dos Seus Cabelos para o amigo.

Confira a história desse encontro contada pelo próprio Caetano:

O artista brasileiro, que já havia promovido o movimento tropicalista antes mesmo de partir para o exílio, voltou fazendo barulho pra valer, unindo-se a Gal Costa, Gilberto Gil e Maria Bethânia com o grupo Doces Bárbaros. Caetano disse, anos depois, em uma entrevista coletiva quando o grupo se reuniu novamente, em 2002, que ele via ‘os quatro sobre uma luz separada e especial’ em relação ao que já haviam feito separadamente ou com outros grupos até então. O movimento tropicalista, que culminou no disco Tropicália ou Panis Et Circencis, permitiu e abriu o caminho para que os Doces Bárbaros pudessem existir, mas não só eles. Abriu espaço para toda uma geração de artistas como os jovens mineiros do Clube da Esquina, os Novos Baianos e duplas que mesclavam o tradicional ao urbano como Kleiton & Kledir que, originalmente, haviam feito parte de um grupo de rock: Os Almôndegas. 

Em 1987, no documentário Eclats Noirs du Samba, dirigido por Paulo Moura, Gil e Caetano conversam sobre os desdobramentos do movimento que os tornaram notoriamente conhecidos:

Caetano reuniu elementos em sua música que lhe permitiam impactar desde a tempestade de areia do Saara à Roma Negra e à Roma Branca. Subverteu e acolheu a ordem joão-gilbertiana ao promover uma forte transformação na Música Popular Brasileira. Ao integrar elementos da música pop ao tradicional, o artista baiano rompeu as fronteiras da cultura nacional e, ao lado de Gil, radicalizou quando foi necessário e, já que a arte não tem fronteiras, por que ele teria?

 

Continua…

Por: João Santiago

ANÁLISE: A toada de Tom Jobim que Chico Buarque cobriu de redondilhas

FOTO: ANA LONTRA JOBIM

Parceiros em inúmeras canções, como Sabiá, Retrato em Branco e Preto Eu Te AmoTom Jobim Chico Buarque sempre foram bem mais que compositores, mas amigos com profunda simbiose. Lançada no álbum Passarim, de Tom, em 1987, a canção Tema de Amor de Gabriela resgata elementos tipicamente brasileiros em sua forma e letra. Produzida para a obra audiovisual com inspiração no livro de Jorge Amado: Gabriela, cravo e canela, foi a partir dela que Chico virou a chave mental para compor Paratodos. 

Expondo sua arte pro mundo, o artista presta homenagem a Tom na abertura do disco homônimo, de 1993. O compositor de Construção desconstruiu a obra do maestro soberano, homenageando não só ele como outros grandes artistas da Música Popular Brasileira. Bebendo da fonte da Bossa Nova e de diversos ritmos brasileiros, Chico é defensor de primeira hora da cultura nacional. A poiesis presente na música Paratodos consiste na amplificação do sentido do ser brasileiro. Sintetizando em redondilhas a toada que Tom Jobim soprou, o letrista dispara:

Foi Antonio Brasileiro
Quem soprou esta toada
Que cobri de redondilhas
Pra seguir minha jornada
E com a vista enevoada
Ver o inferno e maravilhas

Foi com a vista enevoada que o maestro interceptou os olhares de Amado e da personagem Gabriela. Como se transpusesse para si as percepções, Tom, que não se considerava um grande letrista (modéstia embasada na sua impressionante qualificação como arranjador e musicista), anuncia logo no início de sua canção:

Vim do norte vim de longe
De um lugar que já nem há
Vim dormindo pela estrada
Vim parar neste lugar
Meu cheiro é de cravo
Minha cor de canela
A minha bandeira
É verde e amarela
Pimenta de cheiro
Cebola em rodela
Um beijo na boca
Feijão na panela

Chico se conecta sim, em conteúdo, com Tom, ao explorar a diversidade musical do Brasil, mas é na forma que a relação se torna mais explícita. Compare você mesmo as duas canções:

Em Tema de Amor de Gabriela, você encontra a referência que Francisco buscou a partir do minuto 06:07:

 

Ouça agora a canção de Chico e compare:

 

Por: João Santiago

João, uma celebração

 

 

Pode-se dizer que foi a precisão da voz de João que deixou todo mundo petrificado no ano de 1959, quando o artista lançou o álbum Chega de Saudade, representando o marco inicial da Bossa Nova, que reuniria em formas rítmicas o Samba, o Jazz e a música tradicional francesa. Foi Tom Jobim quem, literalmente, arranjou tudo, mas foi a voz de João Gilberto que ficaria marcada no Brasil e no mundo.

Aqui você lê nossa crônica ficcional sobre nascimento da Bossa Nova

À época, havia uma efervescência do que depois ficou conhecido no país como ‘música jovem’, ou, melhor dizendo, a Jovem Guarda. Embora o programa estrelado por Roberto Carlos, Erasmo Carlos e Wanderléa só estreasse em 1965, uma cena forte de rock no Brasil surgia à margem, no final da década de 1950. Assim como o conterrâneo João Gilberto, o baiano Raul Seixas dava seus primeiros passos na música e a ‘Turma da Tijuca’, composta por Jorge Ben, Tim Maia, Erasmo e Roberto, buscava um lugar ao Sol (ou uma apresentação no programa de televisão do Carlos Imperial).

 

O referencial musical brasileiro que até ali era baseado nos cantores e cantoras que tivessem uma supervoz, potente e, por vezes, lamuriosa, caminhava para um som mais simples, cru e verdadeiro. Eis o ponto de convergência entre o Rock e a Bossa Nova. Mas, ao contrário do estardalhaço das guitarras, a Bossa Nova optou pelo violão, banquinho, voz e piano. E assim surgiu João, com seu canto contido, preciso, afinadíssimo e direto ao ponto.

 

Por: João Santiago

 

CRÔNICA: O nascimento de uma inspiração

lapa

 

Foi de uma esquina na noturna Lapa, no Rio de Janeiro, que ouvi um som ainda pouco familiar pra mim. Um piano de peso somava-se ao som da bateria, do contrabaixo e do trompete, projetando uma atmosfera envolvente a metros dali. Enquanto caminhava, estranhava o pouco movimento, e bailava para afastar a chuva fina da ponta do cigarro, que levava entre os dedos. A baixa iluminação dos Arcos da Lapa dava ao ambiente um clima soturno e de medo, que logo foi interrompido por uma roda de samba mambembe que se aproximava.

Juntei-me à roda e cantamos sambas de Donga, Wilson Batista e Noel Rosa:

“O chefe da polícia pelo telefone manda me avisar
Que na Carioca tem uma roleta para se jogar
O chefe da polícia pelo telefone manda me avisar
Que na Carioca tem uma roleta para se jogar”

“Cheguei cansado do trabalho
Logo a vizinha me falou:
– Oh! seu Oscar
Tá fazendo meia hora
Que sua mulher foi-se embora”

“Quem é você que não sabe o que diz?
Meu Deus do Céu, que palpite infeliz!
Salve Estácio, Salgueiro, Mangueira,
Oswaldo Cruz e Matriz
Que sempre souberam muito bem
Que a Vila Não quer abafar ninguém,
Só quer mostrar que faz samba também”

A roda, composta por três jovens, era a vida que faltava para aquele som abafado, que se ouvia ao longe, e o clima sombrio. Ivone sambava com as pontas dos pés enquanto batucava um tamborim, José, com seu fiel chapéu, entoava as melodias e batucava o pandeiro, e Angenor carregava, em riste, seu violão que harmonizava o trio. Juntos, seguimos em direção ao bar. O quarteto instrumental parecia improvisar um som que, àquela altura, já parecia suficientemente familiar para mim.

Paramos à porta e seguramos o som. O quarteto do bar imediatamente parou também. Antônio, ao piano, deu um gole no whisky à sua frente, e logo sinalizou a nós, que voltamos a tocar, acompanhados pelo maestro e os demais músicos. Adentramos o recinto e logo percebi que a música ali se transformara. Já não era mais o que eles tocavam – anos depois descobri que aquilo era Jazz – e também não era o nosso samba. Era algo que eu não conseguia entender naquele momento. Era algo harmônico, mas que eu não entendia.

E foi então que ouvimos passos largos e vimos o semblante de um homem tímido, que trazia um violão na diagonal. João, com um terno branco mal passado, apareceu ali diante de nossos olhos. Mas não foi o que pudemos ver que transformou a nossa noite. Foi o som novo, novíssimo, que saía de seu instrumento. Paramos novamente o som e ouvimos. João cantarolava:

“Dia de luz, festa de sol
E o barquinho a deslizar
No macio azul do mar

Tudo é verão, o amor se faz
No barquinho pelo mar”

E todos nós voltamos a tocar. Eu não sabia o que era, mas tinha ideia da grandeza. Era como pão fresquinho, café recém-passado e bebida gelada.

Nascia ali a Bossa Nova.

 

Por: João Santiago