Edu Lobo 70 anos – Show no Theatro Municipal do Rio de Janeiro

Republicação na íntegra do meu antigo blog “Melhor dia do dia”.

Por alguns instantes, hesitei. Hesitei ir sozinho ao Teatro Municipal na noite passada. Um show comemorativo dos 70 anos de Edu Lobo, com participações especiais de Bena Lobo (seu filho), Chico Buarque, Maria Bethania e Mônica Salmaso.

Só fera.

Hesitei por medo de me sentir sozinho, no meio de tantos grupos e casais que estariam presentes ali. Sim, eu estaria completamente sozinho. Não haveria alguém para tomar um chopp depois e conversar sobre a emoção de ter vivenciado aquele momento.

Resolvi falar grego com a minha imaginação. Conflitos não poderiam fazer parte dos meus sentimentos naquele instante. Não era um show qualquer. Iria entrar pra História da Música Popular Brasileira.

Pesando na balança, decidi ir. Tudo me encantava. As luzes do Teatro Municipal, a energia, o famoso vendedor de balas na porta do Teatro: “bala, bala, bala, chiiiiclete!”. Mas o grande acontecimento ainda estava por vir.

Tomei uma coca cola enquanto observava as pessoas se aglomerando na porta do Teatro e resolvi entrar. As luzes me impressionaram ainda mais. É incrível como observamos melhor as coisas quando estamos sozinhos. Não temos a quem recorrer ou quem possa nos distrair com uma piada ou uma história de vida.

Subi as escadas e cheguei ao ponto mais alto do Teatro: a galeria. Cada clarão é como um dia depois de outro dia abrindo o salão. Logo busquei meu lugar e a tudo observava. Cada vez que passava alguém pelo palco, eu palpitava.

As luzes, então, se apagaram e a banda tocou o instrumental da introdução. Edu Lobo, ovacionado, entrou logo em seguida, dizendo logo ao que veio com sua parceria com Oduvaldo Viana Filho (o saudoso dramaturgo Vianinha), “Chegança”.

Cantou o clássico gravado por Elis Regina, “Upa Neguinho” e seguiu com “Cirandeiro”, letra de Capinam, recebendo Maria Bethania ao palco para delírio das gerais do Coliseu. Destilando lirismo nas canções seguintes, fez todo mundo cantar com seu clássico “Ponteio”, campeã do Festival de Música Popular Brasileira de 1967, na companhia de seu filho.

Seguiu em frente com seu Vento Bravo, prestou reverência à Tom Jobim e pegou o Trenzinho Caipira, de Villa Lobos e letra de Ferreira Gullar, até alcançar, depois de passear pelos frevos “Pé de vento” e “Angu de Caroço”, Chico Buarque.

As luzes do palco diminuíram e um globo prateado surgiu no meio do palco, dando a sensação de drink no dancing para o clima da “História de Lily Braun”. Continuou com Chico, apresentando uma parceria pouco conhecida dos dois, “Lábia” e prosseguiu com “Choro Bandido” para que os poetas como os cegos vejam na escuridão.

Chorei. Me emocionei. Vibrei. Apoiei minha mão no rosto e o cotovelo no braço da poltrona, curtindo aquele momento, sentindo que estava vivenciando a História viva. Mas, naquele momento, só a poesia do Chico me interessava. Mais do que qualquer outra coisa.

Edu fez o público se emocionar em uma interpretação comovente e sincera de “Beatriz”, ao lado de Cristóvão Bastos, pianista e arranjador do espetáculo. Seguiu em frente e recebeu a talentosíssima Mônica Salmaso para interpretar “Valsa Brasileira”. Foi a sua consagração como cantora. Ninguém segura mais.

Como toda grande festa tem seu fim, Edu Lobo fechou seu Grande Circo Místico com “Na Carreira”, juntando todos os convidados no palco e levando o público ao delírio.

Palmas pro artista confundir.

Não, definitivamente eu não estava sozinho.

Outro olhar

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Renato Russo em performance ao vivo

No início da minha adolescência, mais precisamente na pré adolescência, eu me trancava no quarto e ficava ouvindo Legião Urbana, transformando aquele pedaço de vida em algo totalmente meu, que ninguém poderia roubar. Foi como se uma bomba houvesse explodido no ar quando ouvi pela primeira vez o disco duplo ao vivo “Como é que se diz eu te amo – Plateia Livre”.  Foi ali meu primeiro contato com Renato Russo, Marcelo Bonfá e Dado Villa Lobos.

Me surpreendi e logo de cara me apaixonei pelos títulos de cada música, antes mesmo de ouvi-las. Foi assim que conheci “Faroeste Caboclo”, “O Descobrimento do Brasil”, “1965 (Duas Tribos)”, “Metal contra as nuvens” e tantas outras. Aquele disco ao vivo realmente provocou em mim o nascimento de algo que eu só iria entender anos mais tarde.

clique aqui para ouvir o disco da Legião Urbana ao vivo na íntegra

Logo despertei meu interesse profundo pelo lado B da banda e alguns anos depois, acessando o já finado Orkut, conheci a comunidade “Legionários em ação”. Aquilo foi o verdadeiro mapa do tesouro simplificado e com comentários dos piratas que estavam loucos para compartilhar seu ouro com quem mais pudesse querer.

Lá descobri áudios raríssimos de shows da Legião. No Jockey, em 1990, quando Renato Russo, fez uma homenagem ao Cazuza que havia morrido naquele mesmo dia. Encontrei também o áudio completo do famoso e fatídico show no estádio Mané Garrincha, em Brasília, onde vários fãs ficaram revoltados e até queimaram discos da banda na saída do estádio, por uma confusão que houve no show e que levou Renato a encerrar bem mais cedo do que o esperado.

Na homenagem ao Cazuza, Renato Russo faz uma belíssima fala que mostra precisamente a semelhança entre os dois. Na época não era comum as pessoas verem semelhança entre os dois. Anos mais tarde os dois foram postos no patamar de grandes poetas brasileiros.

Renato Russo e Cazuza
Renato Russo e Cazuza

Assista aqui a homenagem que Renato Russo fez ao Cazuza no show do Jockey Clube

Assista aqui o show completo da Legião no Jockey Clube, em 1990

Foi nessa época que comecei a me tornar um escafandrista da música popular brasileira. O amor pela nossa música e a curiosidade capaz de aguçar meus sentidos (e ouvidos) são minhas fontes primordiais de trabalho. Demorei anos para entender e aceitar minha própria identidade. Achava que tudo o que parecia único não era raro e que qualquer um poderia achar aquilo tudo. Não via como algo diferencial meu, aceitava com naturalidade.

E foi assim, achando tudo muito natural, que encontrei áudios raríssimos dos Paralamas do Sucesso, por exemplo, ensaiando na casa da vovó Ondina, avó do Bi Ribeiro, baixista da banda, entre tantas outras coisas que eu encontrava apenas para saciar uma vontade pessoal: ouvir as bandas que eu gostava com gravações que não tinha sido lançadas em disco. Era apenas uma satisfação pessoal. Quando percebi, uns dez anos depois, que poderia trabalhar com isso, a memória e a História, descobri que era bem mais feliz do que eu pensava.

Paralamas do Sucesso
Paralamas do Sucesso

Recentemente, por exemplo, encontrei um áudio raro do show de Chico Buarque realizado na cidade de Veneza, na Itália, em 1993. Não houve registro desse show ou dessa turnê.

Chico Buarque em suas andanças pelo mundo
Chico Buarque em suas andanças pelo mundo

 

Ouça aqui o show de Chico Buarque na Itália, em 1993

Escafandrista da MPB? Não, eu faço samba e amor até mais tarde e tenho muito sono de manhã.

 

O nascimento de Julinho da Adelaide

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Nos anos de 1970, a Ditadura Militar no Brasil se escancarava. Após a decretação do Ato Institucional nº 5, em 13 de dezembro de 1968, ainda no governo Costa e Silva, o regime autoritário se fortaleceu e a censura impôs sobre as artes, principalmente sobre a Música Popular Brasileira, seu papel de cerceamento criativo e ideológico.

O governo Médici, que se estabeleceu na virada da década de 1960 para 1970, ficou marcado pela perseguição aos líderes guerrilheiros de combate ao regime, como Carlos Marighella, além de adotar o lema “Brasil: Ame-o ou deixe-o”. Em resposta, Ivan Lessa, do jornal O Pasquim, na época, completou a frase com uma epígrafe que ficou muito famosa: “O último a sair, apague a luz do aeroporto”.

O clima criado a partir da Copa do Mundo de 1970, através do mote “Pra frente Brasil”, dava a sensação de que o país prosperava e de que havia estabilidade política e econômica, sustentada pela repressão do Governo Médici.

Por outro lado, a MPB sofria com os órgãos de censura. Caetano Veloso e Gilberto Gil, expoentes da Tropicália, partiram para o exílio em Londres. Os dois haviam se destacado no Festival de Música Brasileira da TV Record, em 1967, com as músicas Alegria, Alegria e Domingo no Parque, com participações do grupo de rock argentino Beat Boys e o novíssimo grupo de rock formado por Arnaldo Baptista, Rita Lee e Sérgio Dias, Os Mutantes.

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Chico Buarque de Hollanda, por outro lado, voltava ao Brasil, depois de uma temporada na Itália. Lançou, em 1970, um compacto simples com a música Apesar de você, que criticava ironicamente a Ditadura, mas passou despercebida pelos órgãos de censura.

clique aqui para ouvir a música apesar de você, de chico buarque

A música fez sucesso e o compacto vendeu mais de 100 mil cópias. A população começava a cantarolar e assobiar “Apesar de você” nas ruas e o governo militar logo entendeu que se tratava de uma provocação. Para a Ditadura, a ousadia não podia ser tolerada e Chico foi interrogado sobre o “você” da canção e a resposta veio cheia de sarcasmo: “É uma mulher muito autoritária”. Os militares logo perceberam do que de fato se tratava, se enfureceram, os compactos foram retirados de catálogo e o cerco a suas composições aumentou.

Em 1974, Chico Buarque, cerceado pela censura, gravou um disco só com músicas de outros artistas. Sinal Fechado contou com um repertório de compositores consagrados, como Noel Rosa, Nelson Cavaquinho, Caetano Veloso, Paulinho da Viola (cuja canção é a faixa-título do disco) e suas maiores referências musicais, Tom Jobim e Vinícius de Moraes.

Na ocasião, o compositor lançou duas músicas de grande sucesso sob a autoria do pseudônimo criado por ele, Julinho da Adelaide, na tentativa de driblar a censura. No show Tempo e Contratempo, realizado com o grupo vocal MPB4, Chico cantou Jorge Maravilha, composição de seu pseudônimo Julinho, inventando e contando uma história a respeito dele durante o show.

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clique aqui para assistir Chico Buarque cantando Jorge Maravilha e falando sobre Julinho da Adelaide no show Tempo e Contratempo

O samba foi lançado, então, com o título Acorda, Amor no disco Sinal Fechado, com o devido crédito de autoria dado aos parceiros-pseudônimos Julinho da Adelaide e Leonel Paiva, criados por Chico. A música inicia com um efeito de sirene de polícia, lançando, em seguida, versos que testemunhavam o momento político do autoritarismo vivido no Brasil àquela época:

clique aqui para ouvir a música Acorda, amor

A música passou despercebida pela Censura Federal, corroborando a ideia de Chico de que seu nome era realmente visado e que qualquer música sua que fosse submetida ao crivo da censura, seria vista com maus olhos. Como o nome Julinho da Adelaide era até então desconhecido e tinha pouca visibilidade, não haveria maiores problemas.

Julinho da Adelaide, incorporado por Chico Buarque, ainda deu uma entrevista para o jornalista Mario Prata, do jornal Última Hora, no apartamento dos pais.  No Almanaque Pinheiro Neto – Nossas sete décadas, escrito e organizado por Prata, o autor narra como foi esse encontro.

O Chico já havia topado e marcado para aquela noite na casa dos pais dele, na rua Buri. Demorou muitos uísques e alguns tapas para começar. Quando eu achava que estava tudo pronto, o Chico disse que ia dar uma deitadinha. Subiu. Voltou uma hora depois.

Lá em cima, na cama de solteiro que tinha sido dele, criou o que restava do personagem.

Quando desceu, não era mais o Chico. Era o Julinho. A mãe dele não era mais a dona Maria Amélia que balançava o gelo no copo de uísque. Adelaide era mais de balançar os quadris.

 

Com o tempo, a entrevista se tornou histórica e motivo de muitas gargalhadas entre os envolvidos. Prata conta ainda que, durante a entrevista, o pai de Chico, o historiador Sérgio Buarque de Hollanda, folheava uma enorme enciclopédia. Em determinado momento mostrou ao jornalista a foto de uma negra africana, afirmando ser Adelaide, mãe de Julinho.

A matéria foi publicada no jornal com a foto de Adelaide, já que corria a história de que Julinho não gostava de ser fotografado por causa de uma enorme cicatriz no rosto. Um pseudônimo para driblar a censura acabou tomando forma e, quando sua identidade foi desmascarada, a Ditadura Militar passou a exigir documentos de identificação quando os artistas fossem submeter suas obras à Censura Federal.

Julinho da Adelaide é considerado uma das mais incríveis criações de Chico. Através do pseudônimo, compôs três músicas: Acorda, amor, Jorge Maravilha e Milagre Brasileiro. Apenas a primeira foi gravada em disco de estúdio por Chico. Jorge Maravilha fez parte do show que realizou na década de 1970 com o grupo vocal MPB4 e posteriormente lançada em uma versão até então inédita, que seria gravada também no disco Sinal Fechado, mas acabou ficando fora do repertório.

Com a mesma letra, mas com arranjo totalmente diferente, a música foi lançada em uma coletânea recente da obra de Chico, com a versão remasterizada que seria gravada originalmente no disco Sinal Fechado. Vista por muitos como direcionada ao presidente da época, Ernesto Geisel, o artista negou essa afirmação.

Danadinho esse Chico, hein?

Simonal volta pra casa

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Foto: Leo Aversa

Simonal volta pra casa. Há alguns anos atrás, quando foi lançado o documentário sobre a trajetória de Wilson Simonal, sem dúvida alguma ele veio com tudo mas ocupou apenas a sala de estar. Fez uma grande festa, se esbaldou, bebeu todas com todo mundo, teve baile com seu nome, CD, DVD. A fama que buscou durante toda a sua trajetória após cair no ostracismo em meados dos anos 70 já começava a renascer.

As discussões geradas em torno de sua possível ligação com a Ditadura Militar, os órgãos de tortura e os de “segurança nacional” foram logo retomadas após a explosão contagiante de seu aparente retorno – argumentos estes, muitas vezes, tomados pela paixão e não por provas concretas, por alguém que tenha admitido ser delatado por ele aos militares. Quando a ideologia tende a pesar mais que a justiça, prefiro ficar com a segunda até que provem o contrário.

Mas o que importa nessa história toda é que, sim, Simonal voltou pra casa. Mesmo depois de morto, voltou pra casa. E voltou não apenas por algumas semanas, meses ou anos, mas sim para ficar eternizado definitivamente na História da Música Brasileira. Ícaro Silva, ao deixar evidente seu amor pelo teatro, empresta sua voz, seu corpo, seu gingado e seu talento para que Wilson Simonal seja eterno. Uma capacidade tão grande de se entregar a um papel que chega até a emocionar o público, ainda que nos trechos mais animados do espetáculo.

Uma capacidade tão grande de se doar por inteiro para dar vida ao rei da pilantragem que você nitidamente nota a rasteira do tempo na aparência física e no desgaste emocional devido o ostracismo. Talvez ninguém de fato descubra ao certo, para que não reste dúvida alguma, qual a verdadeira história da relação entre o Simonal e a Ditadura Militar. Mas apresento aqui apenas uma reflexão, dita por um dos filhos dele no documentário. Ora, se ele de fato apoiava a Ditadura e até mesmo delatava outras pessoas do meio artístico, então por que foi parar no ostracismo? Era uma Ditadura, um governo autoritário. Num caso como esse, se Simonal tivesse feito realmente tudo isso, a primeira medida do governo seria torná-lo atração obrigatória em todos os programas de TV, rádio e as notícias não teriam se espalhado.

Mas agora ele tá de volta, ocupou todos os cantos da casa, dança e canta na cozinha, na sala, na varanda, nos quartos. E quem vier incomodar ele já vai mandar em coro, xingando em nagô, com o Teatro inteiro lotado, pra Tonga da Mironga do Kabuletê!

Por: João Santiago.

João Santiago é pesquisador musical, produtor cultural e DJ de música brasileira e Classic rock.

Referências:

Doc. Simonal – Ninguém sabe o duro que dei (2009) Direção: Micael Langer, Calvito Leral e Cláudio Manoel

Peça de teatro S’imbora, o musical – A história de Wilson Simonal (em cartaz no Theatro Carlos Gomes, no Rio de Janeiro). Direção: Pedro Brício Roteiro: Nelson Motta e Patrícia Andrade